sexta-feira, 17 de maio de 2013



Devotos de um vigarista
Escrito por Olavo de Carvalho | 14 Maio 2013
Artigos - Cultura


Longe de ampliar o horizonte dos problemas filosóficos, o que Karl Marx fez foi restringi-lo com um dogmatismo acachapante, instituindo aquilo que Eric Voegelin caracterizou como “proibição de perguntar”.



A Folha de S. Paulo (v.
http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1234518-intelectuais-brasileiros-explicam-porque-ainda-e-importante-ler-marx.shtml) perguntou a quatro dos seus mais típicos mentores por que é ainda importante ler Karl Marx. Nenhum deles deu a resposta certa: porque ninguém pode ignorar, sem grave risco, as idéias que mataram mais seres humanos do que todos os terremotos, furacões, epidemias e desastres aéreos do último século, mais duas guerras mundiais. Infringindo a regra elementar do próprio Karl Marx, de que a verdadeira substância de uma idéia é a sua prática e não a sua mera formulação conceitual, três deles mostraram enxergar o marxismo como pura teoria, separada da ação que exerceu no mundo, e incorreram assim no delito de “formalismo burguês”, o mais abominável para um cérebro marxista. Eu não tomaria aulas de marxismo com esses sujeitos nem se eles me pagassem.
O quarto, prof. Delfim Neto, na ânsia de redimir-se ante a intelectualidade esquerdista do pecado de ter servido à ditadura militar, caprichou no hiperbolismo e atribuiu a Karl Marx o dom da eternidade, que numa perspectiva marxista não faz o menor sentido.

O prof. José Arthur Gianotti recomendou reler Karl Marx cuidadosamente, porque “sua concepção da história foi adulterada, por ter sido colada, sem os cuidados necessários, a um darwinismo respingado de religiosidade.” Adulterada? Colada? Nenhum dos continuadores de Karl Marx revelou tanta dívida intelectual para com Charles Darwin quanto o próprio Karl Marx, que declarou sua filosofia nada mais que a interpretação darwinista da História e só não dedicou O Capital ao autor de A Origem das Espécies porque este não permitiu. Quanto à tonalidade religiosa, ou pseudo-religiosa, ela é mais do que notável nos Manuscritos de 1944 e ressoa em cada linha das verberações proféticas anticapitalistas espalhadas ao longo de toda a obra de Marx. O prof. Gianotti é que quer separar artificialmente aquilo que nasceu junto. “Reler cuidadosamente”? Não é preciso. Bastaria ter lido.

Mas o mais cômico dos quatro foi o sr. Leandro Konder, que intelectualmente já saiu do mundo dos vivos há três décadas e não precisaria ter abandonado seu estado de animação suspensa para confirmar, na Folha, aquilo que ele já provou centenas de vezes: sua prodigiosa incultura, seu total desconhecimento dos assuntos em que opina.

Disse ele: “Os grandes pensadores são grandes porque abordam problemas vastíssimos e o fazem com muita originalidade. A perspectiva burguesa, conservadora, evita discuti-los. E é isso o que caracteriza seu conservadorismo.”

Os conhecimentos que não só ele pessoalmente, mas toda a corriola de mentecaptos marxistas deste país tem daquilo que ele chama “perspectiva burguesa” podem ser avaliados pelo Dicionário Crítico do Pensamento da Direita, em que 104 dessas criaturas ridículas se encheram de dinheiro público para dar um show de ignorância como nunca se viu no mundo. Leia em
http://www.olavodecarvalho.org/textos/naosabendo.htm e depois volte aqui.

Essa gente simplesmente não estuda os pensadores que parecem antipáticos ao seu partido. Adivinha ou cria suas idéias à distância, partindo de fofocas, piadas, fantasias preconcebidas e lendas urbanas que constituem, no seu ambiente mental sufocantemente provinciano, a única bibliografia requerida para quem deseje pontificar a respeito. Fazem isso até comigo, que tenho uma obra publicada relativamente escassa, por que não o fariam com os autores de muitas dezenas de volumes, como Leibniz, Husserl, Voegelin ou o nosso Mário Ferreira dos Santos?

A um boboca que desconhece tudo aquilo que despreza, é forçoso que o horizonte de problemas pensado por Karl Marx pareça, em comparação com o nada, “vastíssimo”. Mas Karl Marx, em verdade, pensou num único problema: a luta de classes. Todos os outros conceitos da sua filosofia foram recebidos prontos, como os de dialética, de alienação ou de comunismo, ou são apenas afirmados sem nenhuma discussão crítica, como o próprio “materialismo dialético”, ou derivam da luta de classes por mero automatismo, como os de ideologia, superestrutura etc. Longe de ampliar o horizonte dos problemas filosóficos, o que Karl Marx fez foi restringi-lo com um dogmatismo acachapante, instituindo aquilo que Eric Voegelin caracterizou como “proibição de perguntar”. Já nem falo dos grandes problemas clássicos como o fundamento do ser, o sentido da existência, o bem e o mal, etc. Nem o próprio conceito de “valor”, essencial na sua economia, ele discute. Postula-o no começo de O Capital e segue adiante, sem notar que disse uma tremenda asneira.

Comparado ao de Leibniz, de Aristóteles ou de Platão (ou mesmo ao de um Eric Voegelin, de um Max Weber, de um Christopher Dawson ou de um Pitirim Sorokin), o horizonte de problemas de Karl Marx é deploravelmente pobre. Sua cultura literária é a de um professor de ginásio, seus conhecimentos de história da pintura, da arquitetura e da música praticamente nulos, suas noções de
teologia não fazem inveja a nenhum seminarista. Pergunto-me, por exemplo, qual a relevância do pensamento de Karl Marx para as ciências biológicas, para a física, para as matemáticas. Zero. A breve incursão do seu amigo Engels nesses domínios foi um vexame espetacular.

Em matéria de ética, então, o tratamento que Marx dá ao problema da felicidade humana é decerto o mais besta, o mais grosseiro de todos os tempos: tomemos o dinheiro da burguesia e todos serão felizes. Enfeitado o quanto seja, o argumento é esse. Só por esse detalhe o homem já mereceria o adjetivo com que o resumiu Eric Voegelin: “Vigarista”.

http://www.midiasemmascara.org/artigos/cultura/14125-devotos-de-um-vigarista.html

segunda-feira, 13 de maio de 2013



13/05/2013-03h30
O bandido e o frentista


A população está entregue às traças, enquanto nos palácios, gente inteligentinha de todo tipo (com o mesmo caráter da aristocracia pré-revolucionária de Versailles) discursa sobre "direitos humanos dos bandidos", toma vinho chileno, paga escola de esquerda da zona oeste de São Paulo que custa 3 mil reais mensais e vai para Nova York brincar de culta.

A inteligência ocidental está podre, mergulhada em seus delírios de reconstrução do mundo a partir de seus três gnomos Marx, Foucault e Bourdieu.

Nós, desta casta de ungidos, desprezamos o povo comum porque pensamos que o que eles pensam é coisa de gente ignorante.

Outro dia fui abordado por um frentista num posto perto da minha casa na zona oeste (perto daquela praça destruída aos domingos pelas bikes -"bicicletas" na língua de pobre). Ele disse: "O senhor não é aquele filósofo da televisão?". E continuou: "Não pense que porque somos proletários, não entendemos o que o senhor fala na televisão".

Quem adivinha do que ele queria falar? Este posto sempre foi 24 horas e agora não é mais. Por quê? Disse ele que estavam todos, do dono aos funcionários, cansados de serem assaltados toda noite. Disse ele: "O ladrão vem na sua moto, para, põe a arma na nossa cara, rouba tudo, ameaça nos matar e vai embora. Nada acontece".

E mais: "E fica todo mundo preocupado com o direito dos bandidos. Onde ficam os direitos de quem trabalha todo dia?".

Vou dizer uma blasfêmia, dirão alguns dos meus amigos da casta inteligentinha: se preocupar com direitos dos bandidos é apenas um modo chique de continuar se lixando para o "povo", assim como os coronéis nordestinos sempre se lixaram, a diferença agora é que a indiferença para com o destino das pessoas comuns vem regada a vinho chileno e leituras de Foucault.

A "elite branca letrada" é completamente indiferente para com o destino desse frentista.

Ele pede para que a polícia "acabe com os bandidos para ele poder trabalhar e a mulher e filhos dele não serem mortos". Ingênuo? Simplista? Talvez, mas nem por isso menos verdadeiro na sua demanda "por direitos".

A verdade é que estamos mergulhados num blá-blá-blá pseudocientífico das razões que levam alguém a ser bandido, seja qual for a idade, e enquanto isso esse frentista se ferra.

O que terá acontecido, que de repente a elite letrada e pública ficou tão "sensível ao sofrimento social" e tão indiferente ao sofrimento desta "pequena gente honesta"? Até escuto alguns de nós dizer: "São uns mesquinhos que só pensam nas suas vidinhas". Quem sabe alguns mais anacrônicos arriscariam: "Isso é resquício do pensamento pequeno burguês".

A verdade é que nós estamos pouco nos lixando para o que essa gente que anda de metrô, trem e quatro ônibus sofre. Todo mundo muito "alegrinho" com a PEC das empregadas domésticas, mas entre elas e os bandidos a vítima social são os bandidos.

A pergunta que não quer calar é: por que em países islâmicos, por exemplo, com alto índice de pobreza, não existe criminalidade endêmica? Será que tem a ver com medo da terrível punição corânica?

Dirão os inteligentinhos que a causa da criminalidade é social. Hoje em dia, "causa social" serve para tudo, como um dia foram os astros e noutro a vontade dos deuses.

Não nego que existam componentes sociais de fome e sofrimento na causa do comportamento criminoso, mas ninguém mais leva em conta que a maioria que vira bandido porque não quer trabalhar todo dia como esse frentista.

Ser bandido é, antes de tudo, um problema de caráter. E esse frentista, pobre também, sabe disso muito bem, só quem não sabe é minha casta de inteligentinhos.

O que dirão os inteligentinhos quando esse contingente de verdadeiras vítimas sociais do crime começarem a se organizar e matar os bandidos a sua volta? Pedirão a alguma ONG europeia para proteger os bandidos dessa gente "mesquinha" que só pensa em sua casinha, seus filhinhos e seu dinheirinho?

Acusarão essa gente humilhada e assaltada de não ter "sensibilidade social"? Dirão que soltar bandidos na rua é "justa violência
revolucionária"?


Luiz Felipe Pondé, pernambucano, filósofo, escritor e ensaísta, doutor pela USP, pós-doutorado em epistemologia pela Universidade de Tel Aviv, professor da PUC-SP e da Faap, discute temas como comportamento contemporâneo, religião, niilismo, ciência. Autor de vários títulos, entre eles, "Contra um mundo melhor" (Ed. LeYa). Escreve às segundas na versão impressa de "Ilustrada".
http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2013/05/1277563-o-bandido-e-o-frentista.shtml

terça-feira, 7 de maio de 2013



A animalização da linguagem

Escrito por Olavo de Carvalho | 07 Maio 2013
Artigos - Cultura

Ninguém debate para mostrar que tem razão, mas apenas para separar quem está do “seu” lado de quem está “do lado dos outros”. As discussões não têm mais objetos: só sujeitos.


No penúltimo estágio da degradação cultural, a linguagem perde toda referência aos objetos de experiência e se reduz a um conjunto de sinais de reconhecimento grupal. O que as pessoas dizem já não tem nada a ver com fatos e coisas de um “mundo” objetivo, mas expressa apenas o reflexo de simpatia ou antipatia com que os membros de um grupo distinguem os “de dentro” e os “de fora”. Quando o ouvinte de um discurso diz que “concorda” ou “discorda”, isso não significa que o conteúdo ouvido reflete ou nega os dados acessíveis da sua experiência real, mas apenas que o falante usou dos cacoetes de linguagem que parecem identificá-lo como um membro do grupo ou como um estranho, como um “amigo” ou “inimigo”. Desaparecido do horizonte o quadro externo que deve servir de mediador entre falante e ouvinte, o acordo ou desacordo entre estes baseia-se agora nos puros sinais de uma identidade coletiva automaticamente reconhecível, como, entre os cães e lobos, o cheiro dos seus genitais ou os resíduos da sua urina no chão. Os sinais sonoros ainda são os mesmos da linguagem humana, mas a regra semântica imanente é a da comunicação animal.

Mas também é claro que esse tipo de reconhecimento não pode expressar uma concordância no sentido profundo e etimológico dos corações que se encontram. Sentimentos pessoais não são signos lingüísticos, são dados de realidade, que, por isso mesmo, permanecem inacessíveis ao uniformismo dos códigos de reconhecimento. Seria mesmo inconcebível que uma modalidade de comunicação incapaz de apreender até os dados da experiência exterior e pública pudesse lidar com a matéria mais fina dos sentimentos individuais. Estes recuam para o subsolo do inconsciente e do inexpressável, o que torna ainda mais enfáticas e vigorosas, como compensação, as ostentações de afinidade grupal. O reflexo de aprovação ou repulsa é expresso com tanto mais feroz intensidade quanto menos corresponde à individualidade da experiência interior e quanto mais reflete apenas a ânsia de identificação com um grupo mediante a hostilidade ao grupo contrário.

Não é de espantar que, suprimida a possibilidade de expressar sentimentos pessoais autênticos, o código uniforme que os substitui e encobre apele, com freqüência crescente, à expressão direta e ostensiva dos impulsos sexuais, que nem por serem de uma repetitividade desesperadoramente mecânica deixam de simular, nesse novo panorama das relações humanas, a função outrora desempenhada pelas confissões íntimas. “Sair do armário”, “assumir-se”, exibir-se despudoradamente em palavras ou gestos, já nada tem de uma confissão: é a inscrição pública num grupo de pressão, premiada imediatamente por manifestações gerais de solidariedade.

O último estágio atinge-se quando esse tipo de comunicação se alastra para fora das conversações banais e debates de botequim e invade a esfera da linguagem “culta” dos jornais, dos debates parlamentares e das teses acadêmicas.

Quase que obrigatoriamente, o que hoje em dia passa por “argumento”, nesses meios, é o chavão identificador que não procura impugnar as provas do adversário, nem mesmo seduzi-lo, mas apenas reiterar o apoio dos concordantes, fazer número, aumentar o poder de pressão mediante a ostentação de uma força coletiva unida, coesa, cada vez mais impaciente, cada vez mais intolerante. Ninguém debate para mostrar que tem razão, mas apenas para separar quem está do “seu” lado de quem está “do lado dos outros”. As discussões não têm mais objetos: só sujeitos.

Quando, trinta anos atrás, o comunista chamava o inimigo de “reacionário”, isso correspondia a uma catalogação ideológica precisa, com traços discerníveis na realidade. Quando hoje a feminista enragée ou o gayzista histérico clamam contra a “elite patriarcal conservadora e machista”, estão aludindo a uma entidade perfeitamente inexistente. A elite neste país, como aliás na Europa e nos EUA, é acentuadamente feminista e gayzista. Resíduos de machismo só subsistem nas classes mais baixas, e um autêntico conservadorismo moral só permanece vivo entre religiosos banidos dos ambientes chiques. Por que, então, atacar um dragão de papel? Precisamente porque é de papel. Nada reforça mais a unidade e a agressividade de um grupo odiento do que a investida fácil, barata e sem riscos contra um inimigo imaginário. De passagem, o inimigo real, o povo cristão, é pintado com as cores repulsivas da classe capitalista que o despreza e marginaliza. Se usassem de categorias sociológicas objetivas para descrever a situação, os inflamados próceres desses movimentos teriam de reconhecer que não lutam contra um poder discriminador, mas contra discriminados e perseguidos, gente sem chance na grande mídia, na carreira universitária e nas festas do beautiful people. Seria terrivelmente desmoralizante. A linguagem dos sinais animais contorna esse perigo, sufocando a realidade sob o apelo histérico da identidade grupal.


* * *

Se querem um exemplo de como ainda é possível, mesmo nesse estado de coisas animalizante, usar a linguagem no pleno sentido humano, tornando a realidade presente e fazendo-a falar por si mesma com eloqüência quase angélica, ouçam a pregação da advogada e pastora Damares Alves, da Igreja Batista, em
http://www.youtube.com/watch?v=BKWc0sUOvVM, sobre a guerra de extermínio moral empreendida pelo governo petista, com a ajuda de grupos bilionários nacionais e estrangeiros, contra as crianças deste país. Mesmo feministas e gayzistas não podem ouvi-lo com indiferença. É, sem favor nenhum, o discurso mais importante e mais valioso proferido em português do Brasil no último meio século. 

Publicado no Diário do Comércio.

http://www.midiasemmascara.org/artigos/cultura/14107-a-animalizacao-da-linguagem.html
Pregação com Dra. Damares Alves

quarta-feira, 1 de maio de 2013

Odioso preconceito

À margem dos grandes jornais, uma operação gigantesca de desinformação a respeito se desenvolve em livros escolares, programas de TV e sites da internet, a começar pela maldita Wikipedia, concebida precisamente para ser levada a sério só por meninos de ginásio.

O célebre historiador britânico George Macaulay Trevelyan, que ninguém dirá ter sido um conservador, escreveu em 1947: “A mais odiosa forma de preconceito moral está na historiografia que condena em voz alta os crimes e perseguições de um lado, e esconde ou defende os do outro.” Ele não imaginava que um dia, num país do Terceiro Mundo, haveria de aparecer uma comissão subsidiada com dinheiro público para dar cunho oficial precisamente a esse tipo de historiografia. Talvez ele imaginasse que semelhante aberração só poderia existir nas ditaduras comunistas, onde a mentira histórica, imposta à população interna para fins de controle social e distribuída no restante do mundo como arma de guerra psicológica, era a norma em vez da exceção.

Como membros do esquema revolucionário tricontinental montado por Fidel Castro, que os recrutou, treinou, equipou, comandou e protegeu, nossos guerrilheiros e terroristas dos anos 60-70 foram cúmplices do morticínio espalhado pela ditadura cubana na América Central, na América do Sul e na África, o qual não fez menos de cem mil vítimas (v. http://cubaarchive.org/home/).
Pelos critérios do Julgamento de Nuremberg, José Dirceu, Dilma Rousseff, José Genoíno e tutti quanti têm muito mais crimes pelos quais responder do que cento e poucos assassinatos praticados no Brasil, que são o máximo que a mídia paternal lhes atribui, desculpando-os aliás, implícita ou explicitamente, como reação ao golpe de 1964, embora as guerrilhas começassem em 1962.
O que torna essa obviedade invisível não é só a deformação do julgamento histórico, mas a completa falsificação geográfica do cenário onde os fatos se desenrolaram. Quando falam da violência militar, jornalistas e historiadores universitários jamais se esquecem de inseri-la no quadro internacional, descrevendo-a como manifestação local da articulação anticomunista montada entre vários governos do continente, com o apoio dos EUA. Nessa perspectiva, nossos militares aparecem como cúmplices de todos os crimes praticados contra os comunistas em escala continental. Já as guerrilhas são invariavelmente mostradas como fenômeno apenas local, sem conexão internacional significativa nem portanto culpa nenhuma pelas misérias que o governo cubano andava aprontando em três continentes.
Essa dupla geografia baseia-se, por sua vez, numa falsificação radical da escala cronológica, pois os governos militares só se articularam para um combate conjunto às guerrilhas em 1975 – a chamada “Operação Condor” --, ao passo que o comando unificado das guerrilhas no continente já existia desde 1962, quando Fidel Castro fundou a OLAS, Organização de Solidariedade Latino-Americana, reforçada pela Conferência Tricontinental de Havana em 1966.
Ou seja: a reação militar ao avanço comunista ocorreu de início sob a forma de iniciativas nacionais independentes, só tardiamente se articulando em escala maior, ao passo que as guerrilhas surgiram desde o início como um empreendimento transnacional organizado. Na nossa mídia, tanto a escala geográfica quanto a cronologia dos fatos são sistematicamente invertidas há pelo menos duas décadas.
Acrescente-se a isso que, à margem dos grandes jornais, uma operação gigantesca de desinformação a respeito se desenvolve em livros escolares, programas de TV e sites da internet, a começar pela maldita Wikipedia, concebida precisamente para ser levada a sério só por meninos de ginásio, onde o início da Operação Condor aparece removido para datas muito anteriores, às vezes até para os tempos de João Goulart na presidência, levando a falsificação ao extremo da mitologia propagandística mais torpe e descarada. Produzido com entusiasmo feroz e renitente por uma militância multitudinária, o volume desse material já ultrapassou de há muito, pela quantidade inabarcável, qualquer possibilidade de contestação racional.
O advento da “Comissão da Verdade” foi preparado com bastante antecedência pela intoxicação goebbelsiana da opinião pública.

***

Se você estranha o descaramento com que os apóstolos do “mundo melhor” mentem, trapaceiam, metem a mão no bolso dos outros e ainda se acham as encarnações supremas da virtude, fique sabendo que isso não é nenhum desvio, nenhuma perversão do espírito revolucionário: é o próprio espírito revolucionário. Eis como Hippolyte Taine, o grande historiador da Revolução Francesa, descrevia em 1875 a mente dos jacobinos:

“Segundo o jacobino, a coisa pública é dele, e, a seus olhos, a coisa pública abrange todas as coisas privadas, corpos e bens, almas e consciências. Assim, tudo lhe pertence. Pelo simples fato de ser jacobino, ele se acha legitimamente tzar e papa... Sendo o único esclarecido, o único patriota, ele é o único digno de comandar, e seu orgulho imperioso julga que toda resistência é um crime... No entanto, resta-lhe pôr em acordo seus próximos atos com suas palavras recentes. A operação parece difícil, pois as palavras que ele pronunciou condenam de antemão os atos que ele planeja. Ontem, ele exagerava os direitos dos governados, ao ponto de suprimir os dos governantes; amanhã ele vai exagerar os dos governantes até suprimir os dos governados. A dar-lhe ouvidos, o povo é o único soberano, e ele vai tratar o povo como escravo. A dar-lhe ouvidos, o governo não é mais que um criado de quarto, e ele vai dar ao governo as prerrogativas de um sultão. Ontem mesmo ele denunciava o menor exercício da autoridade pública como um crime, agora ele vai punir como um crime a menor resistência à autoridade pública.”

Publicado no Diário do Comércio.


http://www.midiasemmascara.org/artigos/desinformacao/14086-odioso-preconceito.html