A crença na "cultura
da periferia" é coisa de
gente com miolo mole
Sei que pôr Auden e Regina Casé num mesmo parágrafo pode parecer certo exagero. Comentando esses mesmos versos num texto da década de 70, o jornalista Paulo Francis (1930-1997) observou que a xícara de chá representava a velha ordem do Império Britânico e de suas classes dominantes. Trincada a xícara – um mundo, então, que desaparecia –, abriu-se caminho para as tragédias das duas grandes guerras. Nossa "xícara" é outra. Não chegamos a ter uma "aristocracia", mas já tivemos algumas ambições. O certo é que a Antropologia da Maldade decidiu fazer da barbárie uma civilização.
Um antropólogo da maldade não acredita ser possível ensinar matemática ou a poesia de Camões e Manuel Bandeira ao morro ou à periferia, mas está certo de que o morro e a periferia é que têm de ensinar funk e rap aos "imperialistas" e aos "playboys", já que se trataria da expressão de um novo sistema de valores. É como se aquela "civilização" já não fosse a nossa. Perguntaram certa feita ao antropólogo francês Lévi-Strauss (na verdade, nascido em Bruxelas) se ele havia se identificado com os índios que estudara. "De modo nenhum!", respondeu. Os nossos antropólogos da maldade não chegam exatamente a se identificar com a "civilização" do morro e da periferia, mas têm por ela um respeito basbaque e reverencial. Lutam para preservá-la da nefasta influência da cultura central, esta nossa – vocês sabem, corroída pelo materialismo, pelo capitalismo e por um moralismo de fachada.
Que coisa formidável! Estamos diante da defesa de uma nova forma de apartheid, um dos refúgios do "pensamento" da esquerda contemporânea. Se a tentativa de ver a "cultura da periferia" como um sistema com valores próprios é só coisa de gente de miolo mole, uma banalidade, essa visão "preservacionista" da civilização da miséria pode assumir uma face cruel quando o assunto é, por exemplo, segurança pública. A polícia, segundo os antropólogos da maldade, estaria proibida de subir o morro sem o prévio consentimento da "comunidade", ou isso caracterizaria uma "invasão". A disposição de enfrentar o crime, que seqüestra as áreas pobres das cidades, é encarada como um ato de guerra, uma hostilidade a um país estrangeiro. E os mortos nos confrontos – exceção feita aos policiais, os "soldados invasores" – serão sempre vítimas inocentes do país agressor.
Lévi-Strauss poderia ensinar a essa gente que os costumes e hábitos de superfície das sociedades – e, pois, também dos morros e das periferias – são manifestações de estruturas de poder. Parecem-me indecentes os protestos de artistas contra a ação da polícia no Rio em contraste com o seu silêncio então cúmplice diante do fato de que os soldados do tráfico matam livre e impunemente nas favelas. A estupidez reacionária desses progressistas chega ao ponto de considerar que isso é coisa "lá deles", da "outra cultura", "matéria da autodeterminação dos povos". Será que devemos reagir ao assassinato dos nossos pobres com o mesmo distanciamento antropológico com que reagimos ao infanticídio entre os ianomâmis?
É improvável que Lévi-Strauss retorne ao Brasil, repetindo a façanha de 1934, quando veio dar aula na Universidade de São Paulo. Agora com 99 anos, completados neste 28 de novembro, é compreensível que tenha outras prioridades. Se o fizesse, talvez aproveitasse para adensar ainda mais a sua obra-marco,Antropologia Estrutural, ou, então, entre a melancolia e o escárnio, perceberia que fez muito bem em esculhambar o país em Tristes Trópicos, obra de 1955 com apontamentos sobre comunidades indígenas brasileiras e notas sobre a nossa cultura urbana. Sobrou até para os universitários, como não? Nos anos 30, eles demonstravam certo desprezo pelos livros de referência, preferindo os resumos. Sua curiosidade intelectual se igualava a uma inquietação gastronômica, e o que parecia inteligência era só disputa por prestígio e vanglória...
Divulgação TV Globo
Regina Casé, em seu programa de TV: a barbárie vista como civilização
Se voltasse, o quase centenário estudioso teria a chance de conhecer, então, esse novo saber. Por enquanto, ele está mais bem adaptado ao clima e à geografia do Rio, mas floresce também em São Paulo, uma cidade mais vetusta, razão por que os antropólogos da maldade, por aqui, costumam se esconder dentro de batinas – ainda que meramente simbólicas – e se entregam a folias físicas e metafísicas com seus "correrias" de estimação. Quando Lévi-Strauss conheceu os índios bororos e nhambiquaras (os de verdade), sabia estar lidando com civilizações que estavam em outro estágio do domínio da natureza, mesmo para os padrões do Brasil, que já lhe pareceu, à sua maneira, tão primitivo, com suas cidades que iam do nascimento à decadência sem conhecer o apogeu.
Ele jamais demonstrou qualquer simpatia pelos grupos que estudou. Constituíam o seu material de trabalho. Bastava-lhe identificar as estruturas, o conjunto de relações, que fazem com que as sociedades sejam o que são – à sua maneira, de fato, cada uma delas encerra um mundo completo e dinâmico. Assim, é perfeitamente possível supor que a cultura ianomâmi seja eficiente para... um ianomâmi. E só outro indivíduo do mesmo grupo é capaz de propor questões pertinentes que mudem a sua história. Veja como sou multiculturalista hoje em dia. Mas, confesso, no tempo de padre Anchieta, meu negócio era catequizar a bugrada.
Para os antropólogos da maldade, os morros e as periferias são civilizações independentes, com estruturas simbólicas definidas pelos indivíduos das tribos, e a postura progressista de um estudioso implica deixá-los entregues à sua própria dinâmica, à sua cultura, a seus valores. Mais do que isso: "eles" teriam algo a nos ensinar, assim como se supõe, ainda hoje, que os silvícolas – veja como sou antigo – podem nos abrir as portas da percepção para a generosidade, a convivência pacífica com a natureza, a igualdade, o associativismo... Poucos se dão conta de que ser índio pode ser chato, difícil e cruel. O Brasil adotou o "bom selvagem" de Rousseau (1712-1778) – o "suíço, castelão e vagabundo", como o chamou o poeta português Fernando Pessoa –, mas não deu a menor bola para as ironias do livro Cândido, de Voltaire (1694-1778), este, sim, um francês legítimo, que fez pouco caso da idéia de um homem em harmonia com a natureza.
A periferia e o morro não são o centro. Continuarão a ser o morro e a periferia, e seus "valores" particulares não são senão a manifestação de uma utopia regressiva de basbaques ideológicos que imaginam converter um dia a linguagem da violência em resistência política. Aquela gente não é o "outro". Aquela gente somos nós, só que "sem fé, sem lei e sem rei": sem esperança, sem estado e sem governo.
Mas você sabe: eu sou muito reacionário. Progressistas são os antropólogos da maldade, desbravadores das veredas que levam à terra dos mortos.
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